terça-feira, 1 de julho de 2014





RETALHOS


Pratiquei natação de competição durante algum tempo e uma das sensações de que me recordo com mais nitidez, mais do que as provas que ganhava, ou as horas que o treino durava, era a da respiração compassada, ao ritmo das braçadas, o que, a par de alguma técnica e de uma resistência muito trabalhada, me faziam estar horas e horas dentro de água, num desempenho que agora me parece longínquo e irreal.
Adorava aquilo! Aquela sensação de não estar cansada, aquele ouvir em off da respiração, de forma surda, porque submersa, mas presente e constante, constante, constante, como um tic tac de um relógio grande e teimoso que não deixa de trabalhar...

Foi disto hoje que me lembrei quando a fui buscar à praia, ao final da tarde. Enquanto o carro deslizava, sem trânsito pela estrada estreita, vi que a maré estava completamente cheia, trazendo quase até mim as duas margens daquela ria quase mar e daquele mar misturado com ria. O sol não se punha ainda, mas o final da tarde tirava-lhe o esplendor radiante do meio do dia e dava-lhe uma suavidade brilhante que se espelhava na água. Prolonguei um bocadinho o momento, aproveitando o semáforo vermelho e atravessei, nostálgica, a ponte estreitinha. Como não a vi de logo, sentei-me estrategicamente de frente para este cenário que me era oferecido.

Tenho tanta sorte de viver aqui!! Se calhar, é mesmo assim: enchemos o sítio onde vivemos de bocadinhos nossos e então, ele torna-se o melhor do mundo! E esta água hoje encheu-me, mesmo que tenha sido por pedacinhos pequenos de tempo e apeteceu-me lançar-me nela, pôr-lhe a nu todos os retalhos que a minha/nossa vida tem...as alegrias, as tristezas, as irritações, os compromissos, as opiniões, os cansaços, os empenhos, os tempos, os atrasos, as esperas, as zangas, os sorrisos, e tantos e tantos outros que nos compõem a todos...
Mergulharia por lá e nadaria, nadaria muito, respirando sempre para compassar o ritmo e o tempo esticaria e não sairia cansada... afinal, já sei que é assim...
E com isto, ela chegou e voltei à tona de repente, mas não me importei... Sei que esta ria com cara de mar e este mar com cara de ria estarão sempre por ali e poderei sempre oferecer-lhes os meus retalhos... todos ao mesmo tempo e tudo!
Venham-me dizer que o mar não lava a alma....


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